PROPRIEDADE: CASA DO CONCELHO DE ALVAIÁZERE
DIRECTOR-ADJUNTO: CARLOS FREIRE RIBEIRO
DIRECTOR: MARIA TEODORA FREIRE GONÇALVES CARDO
DIRECTOR-ADJUNTO: CARLOS FREIRE RIBEIRO

Escavar o passado de Alvaiázere

Dentro da cavidade que todos conhecem, o que nos conta o Algar da Água

31 de Janeiro de 2021

Todos já ouvimos falar no Algar da Água. Uma cavidade que se encontra no topo da serra que coroa Alvaiázere, mas será que a conhecemos?

Faz parte da nossa memória uma ou outra história dos nossos avós sobre este maravilhoso sítio. Atualmente interdita pelo ICNF, devido à importância que possui como maternidade para determinadas espécies de morcegos, não imaginávamos que escondesse tantos segredos.

Quando lá fomos pela primeira vez, há sensivelmente uma década, o nosso coração parou. Logo registamos a presença de um antropomorfo orante, isto é uma pequena gravura, não maior que a nossa palma da mão, de uma representação de um antigo antepassado, com os braços elevados em oração. Os traços, os gestos, a forma mostrava-nos que teria sido realizada no que chamamos de Idade do Ferro, isto é, séculos antes da chegada dos romanos, por volta do 1º milénio antes de Cristo. Ficamos tempos estarrecidos a olhá-la. Percorrendo a cavidade com uma pequena lanterna de bolso logo vimos uma pintura pré-histórica, bem mais antiga que a primeira gravura identificada e outros traços de incisões, muito apagados pelo tempo e pela sujidade que se lhe sobrepunha. Sabíamos que estes sítios são característicos por terem vestígios arqueológicos e procurávamos uma cavidade que nos desse respostas para a Pré-história. Depois de tantos anos a escavar o Complexo Megalítico de Rego da Murta era fundamental perceber se existiam cavidades na região que tivessem traços de ocupação do mesmo período para perceber, em que medida foram realizadas as opções de práticas de enterramento nos monumentos megalíticos e contrastá-los com as deposições nas grutas. Nós tínhamos em Algar da Água as respostas, mas não imaginávamos que as mesmas também estavam presentes nos atos simbólicos que os nossos antepassados retrataram nas paredes da cavidade, deixando resquícios dos seus sentimentos, emoções e crenças.

A cavidade ao todo possui uma área de cerca 130m2, um simples apartamento. Mas a longa história que nos revela é bem mais do que a vivência de um espaço tão pequeno.

Num olhar retrospetivo, como numa viagem no tempo, vemos juras de amor a deixarem a sua marca; visitantes que, num lanche esporádico, descartaram as suas latas de sardinha ou atum; os restos dos seus copos ou pratos que num gesto inusitado partiram e ali perderam; um almoço de amigos; uma passagem rápida, como abrigo das fortes chuvas enquanto se pastoreia os animais; um encontro escondido entre amantes. Somente isto, nestas últimas décadas.

A entrada é feita por uma pequena vertente, aberta à superfície do solo, cujo desnível é de quase 5m.Este é vencido por uma espécie de degraus, em que se utiliza o afloramento rochoso para acesso à primeira sala. Estes degraus, reaproveitados da natureza e afeiçoados com o tempo, são um registo, pelo polimento das rochas, dos inúmeros momentos de visita dos nossos antepassados.

Nessa primeira prospeção, entre os materiais descartados, espalhados pelo local, um ou outro vestígio prendeu a nossa atenção. Primeiramente uma pequena lasca em sílex (artefacto realizado em pedra), logo depois um fragmento de cerâmica de fabrico manual (pré-histórico) e um pedaço de tégula (cerâmica de construção romana). As nossas faces sorriram. A equipa começou logo a articular os trabalhos e a operacionalizar as campanhas de escavação que se seguiriam nos anos seguintes.

Em articulação com o município mostramos o nosso interesse científico em avançar para o estudo do Algar da Água, enviando a proposta de autorização para o ICNF e DGPC, em 2016. Com tudo a postos estávamos prontos para começar a intervencioná-lo. À nossa equipa, após as primeiras publicações, e vendo o interesse e a importância dos achados, logo se juntaram, elementos de outras universidades e diversos especialistas de outras áreas, formando o grupo de trabalho atual, que com rigor e dedicação, tudo faríamos de melhor para entender estas comunidades e receber os segredos que desenham a nossa História.

Ao darmos início aos trabalhos percebemos que estávamos perante dois grandes períodos de ocupação: a mais antiga, onde os dados nos remontam ao período anterior ao início da agricultura e domesticação dos animais, com traços de enterramento humanos tão antigos quanto o tempo referido de Adão e Eva, onde o Homem ainda não sabia plantar ou tratar a terra para produzir dela o alimento. E uma, mais recente do período Romano e Medieval. Entre os vestígios mais antigos, registamos uma pequena falange de um adulto, que ao ser datado num laboratório em Miami, nos comprovava a antiguidade. Estávamos perante um enterramento de um caçador-recoletor há mais de 7000 anos; juntamente, vemos associados alguns antigos artefactos em pedra, como lâminas, lascas e raspadores, que eram usados para cortar carne e raspar as peles dos animais que usavam para se cobrir. Neste tempo a gruta foi o local de eleição para prestar a última homenagem a um falecido familiar que, ali, no silencio da cavidade, ficava protegido. Todos os elementos que daqui saíam e nos faziam ficar com pele de galinha, eram cuidadosamente levados para o laboratório para serem analisados, limpos, inventariados, fotografados, desenhados, estudados e conservados. Um caminho demorado de estudo, discussão e tratamento para retirar deles o máximo de informação possível. É através deles que deslindamos o comportamento humano, as ações, os seus pensamentos e as suas angústias. Após este período vemos vários atos acontecerem, quase todos envoltos em rituais voluntários. Entre os diferentes vestígios, um elemento da equipa, vindo do Brasil, exuma um outro achado relevante, uma pequena mandibula de criança, com não mais de 4 a 5 anos, referem os antropólogos. Claramente, neste período, a gruta era um local sagrado, cheio de significados e mensagens sublimares das crenças destas comunidades. Não só os sedimentos do solo murmuravam, como também as paredes tentavam expressar esses sentimentos. Próximo à zona onde estes vestígios foram recuperados estava a pintura a vermelho, a única reconhecida na cavidade. Dela destacamos um antropomorfo (talvez um retrato), associado a mais 4 manchas indeterminadas. Por analogias com outros sítios bem datados sabemos que será pré-histórica. Se terão sido atos relacionados ou não, isso é outra história, que deixaremos para o futuro, pois a pintura ainda não foi datada. As verbas que nos chegam têm de ser geridas por prioridades, talvez num futuro próximo possamos dar resposta a esta questão.

Mas os segredos do Algar da Água não terminam aqui, no próximo número avançaremos mais um pouco para escutar o que este sítio arqueológico tem para nos dizer. Até lá não se esqueçam: Somos o que fomos e seremos o que conhecermos ter sido.

Alexandra Figueiredo, Docente do Instituto Politécnico de Tomar